Torto arado - Itamar Vieira Júnior

>>  quarta-feira, 21 de abril de 2021

JUNIOR, Itamar Vieira. Torto arado. São Paulo: Editora Todavia, 2019. 264 páginas.

Sabe aqueles livros que, por mais que as pessoas falem, ou você veja algo a respeito, acabam passando batido até que, de repente, caem no seu colo e você finalmente tem a oportunidade de ler? Pois é, foi exatamente isso que me aconteceu com Torto arado. No final de 2020, o vi  em todas as listas de livros favoritos de 2020, sendo indicado por todas as pessoas conhecidas do mundo literário e por leitores em geral. Agora, em fevereiro de 2021, eu tive a oportunidade de lê-lo em uma leitura coletiva, e conto para vocês o que achei da história.

Em uma fazenda chamada de Água Negra, localizada na Chapada Diamantina, na Bahia, vivem diversos trabalhadores rurais que, não tendo para onde ir, em determinado momento chegaram a essa fazenda e pediram morada e um pedacinho de terra para plantar, em troca de ceder parte do que produziam aos senhores da fazenda. O detalhe mais importante: esses "trabalhadores" não recebiam um centavo de seus senhores. 

Nesse cenário conhecemos Bibiana e Belonísia, duas irmãs que, na infância, por causa de uma travessura, tiveram suas vidas mudadas de forma irreversível e se uniram ainda mais por toda a vida. Elas crescem, se casam e cada uma segue seu rumo. Porém, anos depois, o destino as une novamente. Enquanto isso, acompanhamos não só a saga daquelas pessoas para sobreviver em meio à cheia ou à seca do Nordeste, mas também para escapar da tirania dos senhores da terra, que os trata feito escravos, apesar de a escravidão ter sido abolida há um tempo.

É nesse contexto que vamos acompanhando as irmãs e sua família, ao mesmo tempo que seguimos o rastro de outros personagens também envolvidos não só na luta pelo direito à terra e a uma vida digna, com salário, saúde e educação, mas também pelo direito à vida.

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E eis, minha gente, que este livro evolui de desapercebido para favorito da vida!

Tudo começa com a forma como Itamar Vieira Junior escreveu a história. É desembaraçada, fácil de ler, envolvente, crua, enfim, poderia passar o dia descrevendo os atributos da escrita do autor, mas vou deixar um pouco de mistério para que vocês descubram por si mesmos.

A estrutura da narrativa é outro ponto forte, com uma parte da história sendo narrada por Bibiana, e outra parte por Belonísia. O autor conseguiu com maestria criar narrativas distintas inconfundíveis. Sabe aquela história que, apesar de ser narrada por mais de um personagem, você acaba achando que é a mesma pessoa que está contando? Pois é, você não vai ver isso por aqui. Consegui enxergar em cada narrativa a força e a personalidade das personagens. São duas irmãs que, apesar de unidas, são completamente diferentes, e cada personalidade fica estampada na forma como cada uma conduz a história. Aqui, uma grata surpresa narrativa aguarda o leitor. Leia para descobrir (rs). 

Preciso mencionar ainda as relevantes questões abordadas na história, começando pelo título. Se você reparar, a pronúncia rápida de "torto arado" pode soar como "torturado", e isso remete ao tema da escravidão "moderna" abordado no livro, além de outros como reforma agrária, religião e política. Alguns desses temas, mesmo os aparentemente anacrônicos, como a escravidão, permeiam ainda hoje as relações sociais e de trabalho nos lugares mais afastados do nosso país, onde os direitos humanos não se aplicam e as leis são feitas por aqueles que dominam (ou pensam que dominam) a terra, os meios de produção e, sobretudo, as pessoas.

O livro também nos ensina mais um pouco da cultura de matriz africana, pois somos apresentados à religião dos personagens, o Jarê, praticado apenas em cidades do Parque Nacional da Chapada Diamantina. Fiz uma pesquisa breve sobre ela, afinal, eu nunca tinha sequer ouvido falar. Mais uma coisa maravilhosa que a literatura me proporcionou, descobrir uma religião que não conhecia. #eporissoqueagentele

Acabei descobrindo que o Jarê é uma junção, uma combinação de diversas religiões como o catolicismo, a umbanda e o espiritismo kardecista. Você, ao longo da leitura, vai acabar identificando um pouco de cada uma delas. Apesar de dezenas de casas de Jaré terem existido nas cidades da Chapada Diamantina antigamente, hoje em dia elas existem em menor quantidade, não se sabe se por questões socioeconômicas, ou por perseguição policial e religiosa das outras religiões. Essas informações, caso você tenha interesse, podem ser consultadas no site cujo link vou deixar aqui.

Quanto ao contexto de escrita do livro, uma curiosidade é que Itamar Vieira Junior, o autor, é geógrafo e funcionário do INCRA (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária) há 15 anos, onde teve a oportunidade de se aprofundar no que ele próprio chama de "Brasil profundo", aquele Brasil bem distante da realidade dos grandes centros urbanos, com estruturas precárias, de difícil acesso. Além disso, Itamar conheceu diversas comunidades rurais, indígenas e quilombolas, bem como viu de perto a realidade das disputas fundiárias, tratou com lideranças que depois foram assassinadas, além de, claro, ele próprio receber ameaças, ainda que veladas, de fazendeiros e donos de terra.

E é com base em sua vivência de trabalho no Incra e com as pesquisas e trabalhos realizados no sertão nordestino que Itamar escreveu a história, que retrata a violência no campo contra um povo sofrido e oprimido. Por falar nisso, a questão da fala/voz é retratada nessa história não apenas literalmente, mas também de forma metafórica, com um povo que não tem voz para lutar pelo que quer, que não é ouvido, e com as mulheres, que na época em que a história se passa são tratadas como coisas, parideiras. O amor não é o que prevalece no casamento, mas a necessidade.

Falando dos personagens, senti empatia e apego por praticamente todos, exceto pelo Tobias e pelo Salomão, que são duas figuras cruéis de formas distintas na história.

Me apeguei à família de Bibiana e Belonísia de uma forma geral. Desde Donana, a avó paterna, até as crianças da casa. Mas preciso confessar que minha personagem favorita é a Belonísia, e a razão está muito bem explicada no livro, rs. Vou deixar vocês lerem para tirar as próprias conclusões!

Por fim, você vai perceber um tom de literatura clássica neste livro. O autor afirma que Torto arado teve a influência de diversos autores regionalistas da Geração de 30 do Modernismo brasileiro, entre eles Rachel de Queiroz, Graciliano Ramos, Jorge Amado. Quem já leu a obra de um deles com certeza vai identificar traços no livro de Itamar. Até mesmo uma pitadinha de Grande sertão, de Guimarães Rosa, sou capaz de apostar ter encontrado ao longo da história. Não é à toa que este livro já é considerado um clássico instantâneo. Você duvida? Então, leia!


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