Casei-me com um Morto – Cornell Woolrich

>>  sexta-feira, 11 de fevereiro de 2022


WOOLRICH, Cornell. Casei-me com um morto. São Paulo: Companhia das Letras, 1996. 262p. Título original: I married a dead man.
 
– Mas a gente não pode sentar para comer na mesma mesa sem sequer saber os nomes uns dos outros – disse a jovem esposa, desdobrando alegremente seu guardanapo. – Ele é Hugh Hazzard, eu sou Patrice Hazzard. – Suas covinhas surgiram, em sinal de desaprovação. – Nome esquisito, não é?
– Tenha mais respeito – resmungou o jovem marido, sem erguer os olhos dos preços do cardápio. – Estou apenas testando o nome em você. Ainda não resolvi se vou deixar você usá-lo ou não.
– Agora já é meu – foi a lógica feminina que ela usou. – Eu é que ainda não resolvi se vou deixar você usá-lo ou não. E qual é o seu nome? – perguntou ela à sua convidada.
– Georgesson – respondeu a moça. – Helen Georgesson.
E sorriu hesitante para os outros dois. A ele dirigiu o canto externo do seu sorriso; a ela, o centro. Não era um sorriso muito largo, mas tinha profundidade e gratidão, o pouco que lhe restava.
– Vocês foram extremamente gentis comigo – disse ela.
Olhou para o cardápio que mantinha aberto entre as mãos, para que eles não detectassem o lampejo de emoção que fez seus lábios tremerem por um instante.
– Deve ser um bocado divertido ser... vocês – Helen murmurou melancólica (p. 33-34)
 
“Casei-me com um morto”, esse livro de título bem peculiar, foi originalmente publicado em 1948 por Cornell Woolrich, sob o pseudônimo William Irish. Com relativo sucesso editorial, foi adaptado em 1950 para o cinema sob o gênero noir sob o título No Man of Her Own (que pode ser traduzido como Nenhum homem próprio, o que nos mostra que esse livro não está destinado a ter títulos bons), estrelado pela grande atriz hollywoodiana Barbara Stanwick. Woolrich começou a carreira como roteirista em Hollywood, mas retornou à literatura quando não conseguiu sucesso. Ironicamente, vários de seus romances e contos foram posteriormente adaptados às telas, com destaque para o clássico de Alfred Hitchcock “Janela Indiscreta”. Esse caminho cinema-literatura e o potencial do autor em construir thrillers do gênero noir me atraiu e me fez pegar esse livro em um projeto de troca de obras em pontos de ônibus na cidade de Belo Horizonte, que na época eu ajudava na organização e expansão.
 
Quem me conhece sabe o quanto o cinema é importante para mim, em especial o cinema clássico hollywoodiano. A cinematografia preto-e-branco exerce sobre mim uma atração inexplicável, e sou consumidora ávida dos filmes das décadas de 1940 e 1950. Sempre gostei do gênero suspense/noir (gosto que passa para a literatura, pois adoro histórias de suspense e policial) e a premissa do livro aliada ao fato de existir uma adaptação desse jeitinho me fizeram dar uma chance à história. O livro acabou passando um bom tempo na minha pilha de “leituras desejadas” jogado num canto do meu quarto, mas finalmente a sua vez chegou.
 
O livro conta a história de uma mulher grávida de 8 meses que pega um trem lotado. As informações que nos são fornecidas nos fazem inferir que ela foi abandonada pelo pai da criança, deixada apenas com a passagem e míseros 17 centavos. Como sempre, quando me deparo com valores em livros clássicos eu faço a conversão para ter uma real noção da situação. 17 centavos nos EUA de 1948 correspondem a $1,97, que seriam R$10,45. Realmente desesperador para uma mulher grávida, paga um salgado e um refrigerante e olhe lá! Enfim, a mulher está completamente desnorteada e no trem encontra outra grávida, Patrice Hazzard, recém casada a caminho de conhecer os sogros, que nunca a viram antes. A mulher interage e conversa no mesmo vagão que Patrice e seu marido, Hugh, e todos estão juntos quando um terrível acidente acontece.
 
A mulher recupera a consciência dias depois, aos poucos assimilando os fatos: ela deu à luz a um menino, mas foi a única sobrevivente naquele vagão. O susto maior vem quando revelam a identidade registrada no hospital: Patrice Hazzard. Ela foi confundida com sua companheira de vagão e todas suas contas estão sendo bancadas pelos ricos sogros da falecida mulher. Seu instinto inicial é de esclarecer toda a situação, mas a lembrança do desespero e pobreza em que se encontrava a faz pensar que uma vida como Patrice Hazzard pode ser mais fácil do que a que vivia antes. Mas será tão fácil assim?
 
Escrevo essa resenha ainda um pouco confusa, pois tenho muito a comentar e dizer sobre a história, o estilo do autor e um livro que é diferente de tudo o que eu já li. Assim, na tentativa de conseguir explicar tudo que tenho a dizer, vou separar meus comentários em pontos positivos e negativos. Já fiz isso algumas vezes e vocês gostaram, então vou repetir a dose. Inserindo um pouco de positividade nessa leitura, vou começar listando três bons aspectos dessa leitura:
 
O DINAMISMO. Meu Deus como esse livro é dinâmico! Fazia muito tempo desde que li um suspense tão acelerado e envolvente, logo nas primeiras palavras. Desde o primeiro capítulo o leitor já fica interessado e envolvido. Eu mal descobri quem era a mulher misteriosa – Helen Georgesson – para depois tudo mudar. As divisões em capítulos curtos e cortes temporais breves faz dessa uma leitura que flui muito bem e um livro para se ler em pouquíssimo tempo. Eu gosto de ler devagar e não demorei mais que 2 dias para devorar a história. Eu aprecio isso em um livro, a capacidade de fazer o leitor querer caminhar e avançar evita qualquer possibilidade de “ressaca literária”, um mal que acomete todos nós e que é de difícil cura. Definitivamente não é o caso aqui.
 
UM LIVRO ÚNICO. Minhas pesquisas prévias me revelaram que Woolrich é um autor cult que possui diversos fãs fervorosos. Com o decorrer do tempo não foi mais tão publicado, dando um caráter raro às suas obras. Com esse livro eu consigo entender o porquê: ele é único. Eu já li muito suspense na minha vida, mas quase nunca me aventurei em livros do gênero escritos antes de 1980. Mesmo assim considero minha experiência boa, o que me dá um certo gabarito para dizer que o estilo de Woolrich é diferente de tudo que eu já li. Talvez por seu começo e raízes no cinema, achei um livro extremamente dinâmico e visual. Cada capítulo representa uma cena e eu consigo visualizar tudo: figurino, cenário, feições, reações... as ligações são inusitadas e os cortes temporais entre os capítulos são diferentes do gênero por não dar muito prosseguimento ou aprofundamento. Ele tem uma história para contar e tem exatamente a cena na sua cabeça, e é isso que é passado para o papel. Foi algo novo para mim e que me deixou um pouco assustada a princípio, mas que definitivamente é um ponto positivo. É muito difícil fazer algo diferente nesse gênero e isso o autor conseguiu.
 
O FINAL. Tenho algumas considerações negativas sobre o desenvolvimento da história e a construção dos personagens, mas antes de falar do início e do meio eu devo ressaltar que esse é um livro que eu gostei muito do final. Já falei aqui antes que eu não tenho problemas com finais polêmicos, desde que façam sentido. Aqui, o final é perfeito para a história traçada: é surpreendente, cheio de reviravoltas, com uma ação intensa e condizente ao caráter dos personagens envolvidos e que marca. Muitas vezes os autores sucumbem a tentação de dar ao livro o final que desejam, do coração e fogem do mais lógico para a história, da razão. O autor aqui foi muito condizente e talentoso, e a nota que eu dou para o livro hoje é muito em parte da coragem e do modo como isso foi conduzido.

Acho importante ressaltar as qualidades do livro, pois ele realmente as possui. É uma história dinâmica, diferente e bem pensada. A grande questão é se eu gostei dela. Há casos de livros que conseguimos identificar méritos, mas que não agradam tanto, e acho que esse é um exemplo disso. Agora vou tentar explicar minhas razões trazendo três pontos que me deixaram confusa e até mesmo frustrada:
 
A HEROÍNA. Eu detestei a personagem principal, sendo capaz de indicá-la para uma das infames listas do blog, Top Muro de Chapisco. Helen/Patrice é uma mulher que se vê diante de uma situação difícil, mas sua constante indecisão é muito irritante. A vontade que eu tinha era de dar uns tapas na cara ou jogar uma água gelada, para ver se ela reagia. O jeito como o autor a retrata nos passa uma mulher extremamente fraca, indecisa, confusa e não muito inteligente. Temos páginas e páginas descrevendo seu desespero e seu medo, mas quase nenhuma mostrando sua razão e instintos de sobrevivência (esses talvez tarde demais). Vejo isso como o típico caso da visão masculina de uma mulher nos anos 1940: fraca em busca de um milagre ou de um salvador. Foi assim durante muito tempo e só quando esse tom diminui é que eu consegui aproveitar mais a história. É como diz o meme: mulher, reage! Bota um cropped!
 
O CONTRAPONTO. Sem dar spoilers, em certo ponto do livro aparece um “vilão”, algo para atrapalhar os planos de Helen tomar a vida da Patrice. Achei esse enredo um pouco fraco e uma chance perdida de aprofundar mais da vida anterior de Helen e os motivos que a fizeram parar naquele trem com os míseros 17 centavos. Inclusive, esse fato é constantemente repetido e sem muita razão de ser, o que me irrita bastante. A impressão é que a ideia era muito boa e teve uma boa conclusão, mas o desenvolver da história deixou muito a desejar. O autor escolheu focar muito mais no desespero da personagem principal do que nos problemas que podem surgir em assumir uma identidade assim. Nada me deixa mais chateada do que uma boa oportunidade desperdiçada, e sinto que esse foi o caso.
 
O ROMANCE. Eu sei que em 1948 era impossível falar de amor e paixão como falamos hoje, mas o romance descrito na história é muito fraco. Como ele é uma importante ligação para todos os acontecimentos, achei extremamente forçado e mal desenvolvido. Acho que a época não pode ser uma desculpa para histórias de amor mal escritas, há nuances e diversos sentimentos “permitidos” que podem ser escritos e repassados ao leitor, sentimentos que se bem trabalhados podem justificar diversas situações. Esse não foi o caso.
 
Lendo algumas resenhas, a impressão que tive foi a de que escolhi o livro errado para começar a ler Cornell Woolrich. O autor tem suas qualidades, mas esse livro está mais para os fãs incondicionais que absorvem com ansiedade qualquer conteúdo de seus autores favoritos do que uma boa obra de introdução ao fantástico mundo do suspense noir trazido por esse pioneiro do gênero. Acho que preciso de um tempo para esquecer as frustrações que senti com os personagens e quem sabe eu tente no futuro ler um livro um pouco melhor aceito, como “A Noiva Estava de Preto”. E esse é o meu conselho para vocês: se leram essa resenha procurando mais sobre a obra de Woolrich, escutem meu apelo para não começar por “Casei-me com um Morto”. O autor tem qualidades, mas aqui os defeitos do enredo definitivamente sobrepõem-se.
 
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Avaliação (1 a 5):


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