Retrato do Artista Quando Jovem – James Joyce

>>  sexta-feira, 5 de agosto de 2022


JOYCE, James. Retrato do Artista Quando Jovem. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005. 288p. Título original: A Portrait of the artist as a young man
 
“O seu pecado, que o havia feito esconder-se da vista de Deus, o havia levado mais para perto do refúgio dos pecadores. Os olhos dela pareciam olhá-lo com doce piedade: aquela sua santidade, uma estranha luz brilhando de leve sobre a sua frágil carne, não humilhava o pecador que se aproximava dela. Se alguma vez se sentia impelido a afastar de si o pecado e a arrepender-se, o impulso que o movia era o desejo de ser seu cavalheiro. Se alguma vez a sua alma reentrava timidamente na sua morada, depois da aflição do seu corpo em desejo se ter aplacado, era ainda voltada para ela, cujo emblema era a estrela da manhã, claro e musical, falando do céu e infundindo paz: e sentia isso quando os nomes dela eram murmurados suavemente pelos lábios onde, todavia, ainda se arrastavam sórdidas e vergonhosas palavras e até o sabor mesmo de um beijo lascivo” (p. 118-119)
 
Retrato do Artista Quando Jovem é o primeiro livro do celebrado autor irlandês James Joyce, publicado em 1916. Eu sabia que um dia a minha vida de leitora inevitavelmente cruzaria com os livros de Joyce, e tivemos nosso primeiro encontro em março passado. Um livro que antes observava de soslaio e desconfiada na minha estante, aos poucos fui ganhando confiança como leitora e auto estima para encarar essa obra que muitos veneram religiosamente, o que não deixa de ter certo ar irônico quando observamos seu conteúdo.
 
Alguns autores intimidam. Falei um pouco sobre isso na resenha de Orlando, de Virginia Woolf (que vocês conferem AQUI). Algumas obras e estilos de escritas ganham com um tempo um caráter intocável, de reverência intelectual que é difícil alcançar. Por muito tempo me achei inapta a ler autores como Joyce e Woolf, mas os anos de vida aliado à uma bagagem literária me deu maturidade suficiente para calar as vozes de dúvida e inferioridade na minha mente. Com o tempo consegui ver que esse seletismo intelectual é muito nocivo à difusão da prática da leitura. Hoje eu consigo me preparar melhor antes de iniciar uma leitura, sabendo que as palavras atingem pessoas de maneiras diferentes, e eu não tenho a menor obrigação de idolatrar um texto que não foi significativo para mim. E só nesse ano, com a terapia em dia e essa dose de amor próprio, consegui encarar um autor antes tido como inalcançável.
 
Talvez por toda essa mitologia desenvolvida em minha cabeça, e a reverência com que alguns tratam o autor, fiquei extremamente surpresa ao encontrar um livro que flui incrivelmente bem. Veja, a sua leitura não é das mais fáceis pois invoca diversas discussões que podem ou não ser profundas – depende do quanto você deseja cavar! – mas é um texto compreensível e que tem um ritmo bem definido. Não é algo para delongar eternamente se assim você não quiser, pode muito bem ser uma leitura de uma semana. E nesse aspecto eu devo sim elogiar um autor que vem sendo incansavelmente elogiado há mais de 100 anos.
 
Clássicos são clássicos por uma razão. Na verdade, não há um conceito estabelecido para um livro clássico, mas eu gosto de seguir Ítalo Calvino ao considerar um clássico aquela obra que traz traços da sua época e é capaz de influenciar a produção seguinte. Assim, temos em Retrato do Artista Quando Jovem um clássico inegável.
 
Com a narrativa seguindo o igualmente temido e celebrado estilo do fluxo de pensamento (no qual Virginia Woolf também habilidosamente se aventurava), o livro nos traz o protagonista Stephen Dedalus, um alter ego de Joyce para trazer suas reflexões sobre amadurecimento, sexualidade, religião e, principalmente, despertar intelectual. Eu esperava um livro denso filosoficamente, mas não foi isso que encontrei. O estilo narrativo é conduzido de forma a aparentar que o leitor é um intruso nos pensamentos mais íntimos do protagonista, que liga suas reflexões e assuntos de uma forma acelerada e bastante lógica. E é original, diga-se de passagem, como seu próprio começo nos mostra:
 
“Certa vez – e que linda vez que isso foi! – vinha uma vaquinha pela estrada abaixo, fazendo muu! E essa vaquinha, que vinha pela estrada abaixo fazendo muu!, encontrou um amor de menino chamado Pequerrucho Fuça-Fuça...
Essa história contava-lhe o pai, com aquela cara cabeluda, a olhá-lo por entre os óculos.
Ele era o Pequerrucho Fuça-Fuça que tinha encontrado a vaquinha que fazia muu! Descendo a estrada onde morava Betty Byrne, a menina que vendia confeitos de limão.” (p. 9)
 
Se eu esperava uma ode ao intelectualismo e à reflexão, qual foi a minha surpresa em encontrar a vaquinha fazendo muu! Nas primeiras linhas. Reli essa passagem algumas vezes, e até hoje me traz um sorriso ao rosto. Não um sorriso cômico, mas eu sorriso decorrente da surpresa da informalidade inesperada. Não temos muitos outros momentos como esse da vaquinha, mas serviu para me fisgar com atenção, e, com isso, consegui refletir sobre alguns pontos trazidos pelo protagonista, que também eram questões que eu me debatia no meu atual momento de vida. Foi uma coincidência feliz e um caso de um livro certo na hora certa.
 
Consigo entender o amor de algumas pessoas com a obra, mas é um pouco irônico o fato de a venerarem cegamente, quando seu conteúdo traz muito sobre as dúvidas em torno dos padrões religiosos, artísticos e intelectuais.  Eu sinceramente acho que o autor ficaria mais contente com menos unanimidade e mais diálogo em torno de seu texto.
 
Então enfim eu e James Joyce nos conhecemos, e não foi uma experiência traumática. Foi uma boa obra para conhecer o estilo do autor e recomendo para aqueles que querem por aqui iniciar. Não esperem um livro com um enredo definido e uma história impossível de se largar, mas também garanto que não vão encontrar uma obra muito técnica e impossível de ler.
Até a próxima, Joyce. Quem sabe em Dublinenses?
 
Adicione ao Skoob!
 
Avaliação:

Postar um comentário

  © Viagem Literária - Blogger Template by EMPORIUM DIGITAL

TOPO