Tess dos D'Urbervilles – Thomas Hardy

>>  sexta-feira, 6 de novembro de 2020

 
HARDY, Thomas. Tess dos D'Urbervilles. Vitória: Editora Pedrazul, 2106. 352p. Título original: Tess dos D'Urbervilles

Mais um dia, mais um clássico que a gente descobre, e mais um livro que acaba com nosso pequeno coração... Fazia tempo que uma obra mexia tanto comigo, me deixava tão sentimental, tão na “bad”, e tudo assim, sem nem esperar! Os melhores livros são essas surpresas, aquele que você começa a ler sem expectativas, sem noção da história, sem ciência de sua fama e então... seu mundo desaba daquele jeito que só um bom livro, uma boa história, uma história comovente são capazes de fazer. Senhoras e senhores, eis TESS DOS D’URBERVILLES!
 
Tess dos D’Urbervilles é considerada a obra prima do britânico Thomas Hardy, tendo sido publicado em 1891. Hardy se assemelha ao estilo de George Eliot (cuja obra Middlemarch recentemente resenhei) e suas obras se passam durante o declínio do status da população rural na Grã-Bretanha, especialmente no sudoeste da Inglaterra. Do autor li também “Longe Deste Insensato Mundo”, e comparando as duas obras posso dizer que alguns temas são corriqueiros: 

·         Paisagem rural, e o trabalho manual no campo como um grande “purificador” da honra de uma pessoa;
·         O conceito da perda total: a propriedade rural ligada aos êxitos de uma pessoa, bem como a sua razão de vida;
·         Pessimismo à natureza e sua força brutal, que sem maiores avisos pode acabar com todas as conquistas do homem;
·         A mulher injustiçada e enganada por um homem manipulador, maldoso e sem escrúpulos;
·         A figura de um homem religioso, bondoso, de princípios, que ama a mulher injustiçada, porém não quer se vincular a ela;
·         Sua escrita e os destinos dado aos seus personagens mostram um pessimismo inerente, combinado com doses de melancolia e tragédia;
·         A ideia de que o destino de uma pessoa está traçado e pouco há o que fazer.
 
Falando assim parece horrível, mas as histórias são bem escritas e elaboradas e, mesmo pressentindo que tudo vai dar errado e a desgraça vai piorar, você simplesmente não consegue parar de ler. Culpo isso ao nosso sentimento romântico idealista que espera ansiosamente o final feliz, como forma de consertar tudo e valer a pena a trajetória dolorida da vida. Os livros de Hardy, especialmente Tess, não seguem esse mesmo caminho: a vida pode ter alegrias pontuais, mas a luta, o trabalho árduo e as circunstâncias de uma sociedade masculina cristã são muito mais fortes que a força do amor. Após ler o livro, chego a conclusão de que vivemos numa sociedade patriarcal e a simplicidade de uma pessoa não é possível trazer a felicidade. Pois é, estou em um sério estado de depressão depois de ler esse livro, mas não é de todo ruim: há muito tempo um livro não me fazia pensar tanto, trazia tantos sentimentos de tristeza e revolta, e talvez me moveu para ter conversas importantes como uma maneira de apaziguar essa luta interna. Esse é o poder da literatura, e vou tentar explicar um pouco melhor.

Situado na Inglaterra rural, o romance conta a história de uma garota pobre, Tess Durbeyfield, que é enviada por seus pais para uma família supostamente nobre na esperança de encontrar uma fortuna e um cavalheiro como marido. O pai da moça, ignorante e facilmente impressionável, acredita que seu sobrenome “Durbeyfield" é uma variação de "d'Urberville", nome de uma nobre família da região. Completamente atordoado pelas oportunidades que um mundo de sangue azul podem trazer, ele envia sua filha adolescente, a bela, pálida, rosada e simplória Tess, na única carruagem da família e fonte de todo os seus sustentos para conhecer seus possíveis parentes ricos, na esperança de encantar a família a ponto desta a adotar. No caminho, exausta do esforço, a jovem adormece sob as rédeas e causa um acidente entre carroças, matando o único cavalo da família. Tess se sente tão culpada pela morte do animal e pelas consequências econômicas para a família que resolve visitar a Sra. D'Urberville e pedir ajuda evocando a honra e os deveres do provável parentesco entre elas. O que a jovem desconhece é que o marido da Sra. D'Urberville, Simon Stoke, adotou o sobrenome aleatoriamente buscando uma melhor colocação social, não tendo qualquer parentesco com a família.
 
Tess não consegue encontrar a Sra. D'Urberville, mas sim o seu filho libertino e devasso, Alec, que fica completamente encantado pelas feições puras e simplórias da moça, e lhe garante uma posição como criadora de aves na propriedade. Tess sente-se afrontada e repudia os avanços românticos do rapaz e alerta seus pais sobre os riscos de aceitar o emprego, mas eles ainda estão completamente cegos no conto de fadas que criaram e esperam que o rapaz se apaixone e case com Tess, para tirar toda a família da miséria. Ela detesta Alec, e sente uma repulsa física à sua presença e aos avanços indecentes que ele constantemente faz, mas sente que deve a família pelo cavalo morto e decide aguentar no seu emprego até ter o suficiente para repor os danos.
 
Um dia, após uma longa jornada de trabalho, Tess volta caminhando para casa com alguns outros aldeões, quando acidentalmente desperta a atenção de uma mulher, a antiga amante favorita de Alec, que foi descartada com a chegada de Tess. A mulher ameaça Tess de morte, ou ao menos atrapalhar a sua beleza, quando Alec chega e a "resgata" da situação. Em vez de levá-la para casa, no entanto, ele cavalga através da névoa até chegarem a um antigo bosque em uma floresta, quando informa que está perdido e sai a pé para se orientar. Tess, cansada dos acontecimentos do dia e do trabalho, não aguenta e cochila dos arbustos. Alec então se aproveita da vulnerabilidade da moça e a estupra.
 
A partir daí a vida de Tess está definida: ela é aquela que não é mais pura, que foi violada e para sempre está marcada. Nenhum casamento a salvará da vida de pobreza com seus pais pois a sua imagem e sua honra foram maculadas, e todos da cidade sabem disso. É marcante como a moça se sente culpada e vergonhosa pelo acontecimento, apesar de ser mais que claro que ela não fez nada de errado. Nada mais resta para a pobre moça a não ser literalmente enterrar o seu passado e mudar de cidade, para um lugar onde as pessoas não conheçam a sua desgraça.
 
Antes de continuar a história, gostaria de fazer algumas considerações sobre a temática da violência sexual aqui abordada. Lembro que o livro se passa em 1870 e foi publicado em 1891, e o assunto muito chocou a crítica e o mundo literário, que classificou a obra como “indecente”. Na verdade, em nenhum momento o autor escreve a palavra “estupro”, ele somente deixa a entender que houve relações sexuais, cabendo ao leitor distinguir entre sedução ou violência. Li ou pouco sobre o assunto e a minha opinião é bem clara. Por tudo o que ele nos falou da relação entre Alec e Tess, para mim não resta dúvidas de que a relação não foi consensual, e todo o livro deixa isso bastante claro. Essa escolha pela subjetividade parece ser uma manobra do autor para preservar a inocência do público e satisfazer o código moral da época. Essa discussão literária para mim fica em segundo plano em relação ao que considero principal: a visão da mulher aos olhos do autor, um homem.
 
Tess é uma mulher pura. Inclusive, na primeira edição do livro, esse era o seu subtítulo “Uma Mulher Pura”, o que foi excluído nos lançamentos posteriores. Para o autor, ela é a personificação da pureza e castidade bíblica: puramente natural e puramente mulher (a essência do feminino), pura em beleza e em seus motivos. Até que o pecado recai sobre ela e as consequências desse fato a seguem por toda sua vida. Tess é impotente e principalmente submissa àqueles ao seu redor. Mas ela sofre não só por causa do “sedutor” que a destruiu, mas também por seu amado que pouco faz em seu bem. Apesar de seu sofrimento e fraqueza, ela demonstra paciência e resistência sofridas. Tess sente prazer em trabalhar nas fazendas leiteiras e parece quase invencível às provações da vida. Ela é bonita, é lutadora, é decente: ela é o ideal da mulher trabalhadora inglesa do século XIX. Porém, o destino não foi bom para ela.
 
A história de Tess é mais do que a violência sexual por ela sofrida, bem como este não é o último de seus inúmeros sofrimentos. Mas ela luta, e como luta. Ela tanto fez que a vida lhe dá uma segunda chance, de maneira inesperada. No fundo, Tess sabe que é inútil tentar escapar de seu passado, mas a possibilidade de felicidade em uma vida miserável é uma grande tentação.
 
Aos 20 anos, Tess encontrou trabalho em uma fazenda de gado leiteiro onde seu passado é desconhecido. Aqui ela encontra um bom trabalho pelo qual é apreciada e inclusive faz amizades com as outras mulheres da fazenda. E é ali que ela conhece a sua segunda chance, Angel Clare, aprendiz de fazendeiro. Angel é o filho mais novo de um pároco e esperava-se que ele seguisse carreira na igreja. Mas ele não tem vocação para o clérigo, inclusive por várias vezes questiona os dogmas religiosos, o que faz com que ele escolha investir na agricultura e na vida ligada à terra. Bonito e jovem com forte caráter moral, Angel é um objeto de intenso amor para as mulheres que trabalham na fazenda, mas é a diligência de Tess, sua natureza simples, sua beleza e sua inocência que o atraem. Tess faz o possível para impedir Angel de persegui-la, pois se considera inapta a ser amada e ser feliz: o pensamento de seu passado a alcançando é seu maior medo, mas seu próprio amor por ele e a chance improvável de felicidade são tentações esmagadoras.
 
Tess dos d'Urberville é essencialmente uma narrativa em terceira pessoa, mas a maioria dos eventos são vistos pelos dos olhos de Tess. A ordem desses eventos segue uma sequência cronológica simples, o que atesta a característica simplória da vida rural. A linguagem, inclusive, muda de acordo com as classes sociais das pessoas. É um estudo interessante sobre a época, e muito bem feito, diga-se de passagem.
 
Eu não posso falar mais da história sem entregar spoilers, mas posso falar de Stonehenge, o famoso local pré-histórico no interior da Inglaterra que, de forma literal e simbólica, simboliza a personagem de Tess e seu trágico destino.
 


Em um dia inesperadamente frio da primavera inglesa, fui com um grupo de amigos conhecer as famosas pedras pré históricas. Muito me falaram contra o passeio antes de o fazer, alegando ser algo tedioso, sem outras atrações a não ser “olhar pedras”. Ignorei os avisos e fui mesmo assim: em abril de 2019, num mundo pré pandemia, não vou perder a oportunidade de visitar um dos lugares mais famosos do mundo por que algumas pessoas simplesmente o consideraram tediosos. Eu sou dessas que adoro o que outras pessoas chamam de chato: museus, caminhadas por centros históricos, livros clássicos como Tess... eu sou diferente, e algo me dizia que Stonehenge seria para pessoas como eu, que acham a beleza em lugares diferentes. E eu não estava enganada!
 
O passeio é simples: você vai até uma base turística, compra os ingressos, pega alguns fones de ouvido para uma visita guiada e entra no parque, pegando um ônibus que te leva o mais próximo possível das pedras. A partir daí você tem uma direção obrigatória a seguir, passando por alguns marcos com respectivas gravações nos audio-guias, te ensinando sobre a história e representações do lugar. É uma verdadeira aula de pré história, e o curto caminho é muito bem aproveitado: primeiro você observa o lugar de longe para depois chegar bem pertinho das pedras.
 

Honestamente não conheço muito sobre a história do lugar e meu interesse em pré história é inexistente, então não prestei atenção ao áudio-guia que vem com o passeio, mas consegui entender algumas coisas: o lugar é tipo como um templo pagão, um lugar de sacrifício e grande importância à agricultura. E é incrível que as pedras datadas entre 3.000 e 2.000 AC ainda estejam lá e foram assim montadas. Mas o dia para mim não foi sobre aprender sobre a pré história, mas sim sobre sentir.
 
Lá do alto, olhando as pedras, eu senti o poder da natureza: nunca um vento tão forte me abateu, com um frio gelado fora de época, mas que me fez resgatar meu casaco de inverno em plena primavera. Ali, todos os sentidos são exigidos: a visão, para enxergar além do horizonte plano, de gramas e poucas cabras pastando; o olfato que consigo lembrar agora mesmo, o cheiro da grama verde e farta, de primavera, em pleno vigor; a audição, pois o vento ali, ao se bater nas pedras faz alguns sons que parecem querer conversar com você; e o tato... você não pode tocar nas pedras por uma questão de preservação do patrimônio histórico, mas você sente na pele aquele vento daquele lugar que tem um quê de magia. No meio da volta eu me senti viva, limpa, plena, como me sinto após uma longa meditação. Ali, num templo pagão, senti a minha espiritualidade e sorri como nunca sorri antes da viagem. Foi uma terapia, algo que ansiava arduamente sem ao menos saber que precisava, algo extremamente necessário para seguir em frente e aturar todos meus problemas e tarefas. Foi sensorial, simples e belo.
 

 
Isso me leva a refletir sobre Tess. Uma cena importante do livro se passa em Stonehenge, e me pego pensando em todas as significações que levaram o autor a situar sua obra ali. Não posso dizer qual o seu raciocínio, mas posso dizer o que acho baseada em minhas experiências.
 
A Tess para Hardy é o ideal de mulher, que ele mesmo prova que não existe: o pecado e as consequências nos atingem, e devemos parar de tentar viver com tamanha perfeição, pois ela é inalcançável. Tess é o típico “mundo natural” em contraposição à sociedade vitoriana que ela tanto buscou com seu sobrenome “D'Urbervilles”. Talvez o altar de Stonehenge afaste da sociedade cristã e de seus padrões, aproximando a uma cultura pagã e instintiva, talvez seja isso: a natureza e a moralidade de Tess estão ligadas ao mundo natural, inerentemente pagão em seu reconhecimento da natureza (incluindo a natureza humana) como uma força potente e até divina. E eu senti a natureza naquele lugar, não posso negar!
 
Para terminar, fica aqui a minha indicação de um clássico muito bem escrito. É um livro que vai te fazer sofrer, mas vai te fazer pensar, ponderar, vai tomar seus dias, suas noites, suas conversas, seu tempo livre e aquele tempo que você deveria estar trabalhando, mas está com um livro escondido. É a nossa natureza, sentir, pensar, viver e ler! E por isso eu recomendo que todos conheçam e desconstruam a figura da mulher pura apresentada em Tess dos D'Urbervilles!
 
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