Enclausurado – Ian McEwan

>>  sexta-feira, 20 de agosto de 2021


MCEWAN, Ian. Enclausurado. São Paulo: Companhia das Letras, 2016. 200p. Título original: Nutshell.


“Então aqui estou, de cabeça para baixo, dentro de uma mulher. Braços cruzados pacientemente, esperando, esperando e me perguntando dentro de quem estou, o que me aguarda. Meus olhos se fecham com nostalgia quando lembro como vaguei antes em meu diáfano invólucro corporal, como flutuei sonhadoramente na bolha de meus pensamentos num oceano particular, dando cambalhotas em câmera lenta, colidindo de leve contra os limites transparentes do meu local de confinamento, a membrana que vibrava, embora as abafasse, com as confidências dos conspiradores engajados numa empreitada maléfica.” 
(p. 9) 

No último livro que resenhei do badalado escritor inglês Ian McEwan, comecei a resenha desta maneira: 

Cara, isso é muito Black Mirror! 

A clássica frase dos fãs da famosa série da Netflix reflete bem minhas opiniões sobre o mais novo livro de Ian McEwan, quem rapidamente caminha para ser um dos meus autores favoritos da atualidade. Black Mirror (série que fervorosamente indico, por tratar do lado obscuro de uma sociedade dependente da tecnologia) teria um incrível roteirista em Ian McEwan, carinhosamente apelidado de Ian Macabro.

Talvez o livro então em questão, Máquinas como Eu (cuja resenha você pode ler AQUI), seja bem mais distópico e desafiador do que o que resenho hoje, Enclausurado. Porém, mantenho meu comentário: Cara, isso é muito Black Mirror! 

Talvez não seja uma inovação no sentido ficcional, mas definitivamente é uma narrativa inovadora que brinca com os limites da ficção na literatura. Explico: em Enclausurado, Ian McEwan nos traz a história de Trudy e Claude, amantes que planejam o assassinato do marido de Trudy que também é irmão de Claude. A novidade? Tudo isso é contado sob a perspectiva do bebê ainda enclausurado na barriga da mãe. Parece que a ideia do livro surgiu após o autor conversar com uma mulher nos últimos meses de gravidez, o que o fez pensar se o bebê podia ouvir e entender a conversa, se reconhecia vozes, pessoas... foi o suficiente para o talentoso autor arregaçar as mangas e bolar uma história contada por um menino ainda não nascido, mas que já muito conhece sobre o mundo e é ávido por conhecimento, já tem gostos e desgostos e com uma personalidade formada ali no seu mundinho. Essa premissa inovadora foi suficiente para me fisgar e comecei a ler o livro com uma grande expectativa, vindo de um autor que aprendi a admirar. 

Enclausurado é uma versão contemporânea de Hamlet (que vocês conferem a resenha AQUI). Temos na história um homem que sofre ou está prestes a sofrer uma tremenda injustiça pelas mãos de duas das pessoas que mais confia e ama no mundo: a esposa e o irmão. Na história, seu filho observa a situação do adultério da mãe com o tio e as tramas contra o pai sem voz e sem reação, ela vindo quase sempre tardiamente. É um enredo shakespeariano clássico que sempre entrega o que promete: muita emoção, senso de justiça e nervos à flor da pele. Não é diferente aqui. O bebê é um espectador presente e protegido pela barreira da pele e placenta materna que lhe dá um esconderijo privilegiado. Ali, ele consegue escutar tudo o que a mãe fala para o pai, tudo o que ela conversa com o tio. É um estudo elaborado ao longo de 9 meses que no final o deixa capaz de distinguir sentimentos e tomar partido: ele quer claramente defender o pai contra um tio que odeia já visceralmente. O seu relacionamento com a mãe é um pouco mais complicado, quase próximo àquele de um adulto de 40 anos após anos de terapia. Ele ama a mãe, mas ao mesmo tempo a repudia. É um amor complicado, pois ela quer tirar o seu direito a um pai, colocando em risco uma vida mãe-filho por causa de um amor de momento, que ele nem considera ser tão profundo assim, a partir de reações fisiológicas dela ao encontrar o amante. O livro definitivamente é complexo e bem escrito, não há o que discutir neste ponto. 

Empolgada com um narrador inusitado e ousado, além dos toques shakespearianos que sempre me conquistam, li Enclausurado quase com um tom reverencial. Os primeiros capítulos são espetaculares e entregaram tudo aquilo que esperei uma prosa fluida, inteligente, acelerada e descritiva sem ser pedante. Logo de cara já entendemos a situação: estamos na barriga de Trudy, uma mãe relapsa que fuma e bebe o dia inteiro e com a libido um pouco elevada. A gravidez é avançada, e fazemos parte dela. O bebê, muito sabido e perspicaz consumindo podcasts, notícias, música e informação por intermédio de sua mãe, uma mulher bem de vida no CEP mais hipster e cool de Londres – Shoreditch (que hoje é cenário de diversos livros situados na cidade, dado seus moradores peculiares e seu senso moderno de comunidade). A partir do tom de voz e descrição de outras pessoas ele têm uma descrição física de como a mãe deve ser: loira, com cabelos pesados presos preferencialmente em duas tranças, dona de uma beleza peculiar e incomum, com o dom de atrair pessoas. Já Claude, o vilão intruso da história (com o menor grau de compatibilidade genética entre os personagens do livro), é apresentado como um homem bruto, gordo, arredio, grosseiro. Nosso bebê desde já deixa claro que não gosta de Claude e deixa implícito que acostumou com a negligência materna, e não muito espera dela. 

O relacionamento de Trudy com o pai do bebê, John Cairncross, é um tanto quanto instável. Eles não moram juntos e ela ocupa o apartamento dele. Ao que tudo indica, ele ainda tem esperanças de reviver o casamento, mas não é o que Trudy quer. Ela quer o apartamento e o dinheiro do seguro de vida cujo beneficiário é o bebê. Assim, ela provavelmente o largará em algum internato e viverá a vida que deseja. Claude, pelos olhos do bebê, é apenas um instrumento em seu plano, um capanga executor do plano de seu mestre, sendo facilmente manipulável. A criança parece aceitar esta sina, ou viver na esperança dos planos do assassinato serem apenas planos. Mas tem uma coisa que ela não suporta, e é a parte mais aflitiva da história. 

O bebê não suporta a relação sexual entre sua mãe e seu tio. Que frase horrível de se escrever, mas é exatamente esse o caso do livro. Por questões anatômicas, o pênis do tio fica apenas a centímetros da cabeça do bebê, que não aguenta o ultraje e o desrespeito que é essa intimidade que lhe é forçada com o inimigo de seu pai: “Nem todo mundo sabe o que é ter o pênis do rival do seu pai a centímetros do seu nariz” (p. 28). Eu realmente não sei o que é isso, mas depois das descrições viscerais do livro, acho que agora faço uma pequena ideia e não gostei de nada disso. 

E aqui talvez apareça um dos problemas que tive na leitura. A sensação que eu tive é que ela foi meticulosamente conduzida para chocar, e eu não gosto quando as emoções são assim manipuladas. Eu gosto de livros que me chocam pela natureza da história, não por uma cena cuidadosamente escrita pensando em incomodar. Muitos discordam de mim, o que é facilmente perceptível pesquisando resenhas na internet, especialmente em inglês. O que me traz ao segundo problema que tive com o livro: a história não se sustenta. Talvez rendeu por alguns capítulos, mas depois eu me cansei de tanta descrição e espera. Acho que o enredo se desenvolveu muito devagar e os acontecimentos posteriormente apresentados não me empolgaram. A surpresa e a empolgação pelo narrador duram por alguns capítulos, e depois eu queria acabar rapidamente para partir dessa para uma história mais interessante. 

E aqui chego ao meu terceiro problema do livro. As vezes, quando um autor é muito celebrado e ovacionado ele ganha uma legião de fãs que acompanham tudo o que ele escreve. Na verdade, isso é bastante normal, tendo eu mesma diversos autores que leio tudo e qualquer coisa que escreverem. O problema é quando essa devoção nos cega quanto à qualidade de alguns livros. É quase como se assumir que um livro não é tão bom quanto o normal do autor fosse uma revogação permanente da carteirinha do fã clube. Eu percebi isso nesse livro: só por que Ian McEwan escreveu, um dos maiores autores de ficção da Inglaterra e um absoluto sucesso editorial, o livro tem que necessariamente ser bom. Ele definitivamente não está no nível dos demais, e dizer isso não me fará uma fã pior, apenas uma mais crítica. Fica a reflexão! 

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Avaliação (1 a 5):


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