Diário de um Cucaracha – Henfil

>>  sexta-feira, 18 de fevereiro de 2022

 

HENFIL. Diário de um Cucaracha. Rio de Janeiro: Editora Record, 1983. 276p.
 
“New York, 05 de outubro de 1973
 
Zéduardo, mano velho de guerra!
 
(...)
 
Você me pergunta pelo curso de inglês no Berlitz. De fato, foi loucura minha sair daí sem saber falar nenhuma palavra de inglês. Agora me arrependo de nunca ter prestado a mínima atenção nas aulas de inglês no Colégio Arnaldo, de BH. Mas com o joelho nesta explosão, desde que cheguei do aeroporto ainda não saí de casa. E toca a ler jornais do Brasil, porque o New York Times é grego. Só entendo as fotografias. Dá um desespero, Zé, pensar que vou ter que um dia decifrar aquilo tudo.
 
O cara com quem divido o apartamento, Orlando Araújo Henriques, é mineiro de Belo Horizonte. Tá quebrando o maior galho. Telefone toca e não atendo. Vou entender nada. Fica o bicho tocando, tocando, que do outro lado vão falar inglês. Quando o Orlando chega do Trade Bureau é que se fica sabendo quem telefona e por quê.” (p. 11-13)
 
Diário de um Cucaracha foi publicado em 1976 e conta a experiência do jornalista, cartunista e escritor Henrique de Souza Filho, mais conhecido como Henfil, em Nova York entre os anos de 1973 e 1975. Podemos classificar a obra como pertencente ao gênero “memórias”, que tem um lugar especial no meu coração. O livro é uma organização de cartas (e uma entrevista dada ao periódico Pasquim em 1973) enviadas por Henfil para sua família e amigos durante o período. Apesar de não se tratar de um material escrito com um livro especificamente em mente, as cartas seguem uma ordem cronológica e juntas conseguem mostrar um contexto da vida do autor naquele momento, trazendo especialmente suas razões para sair do Brasil naquele momento e a dificuldade em se adaptar em um novo país.
 
Eu não conhecia muito sobre a vida e obra de Henfil e esse foi um excelente livro para isso. Há algo muito intimista em ler sobre a vida de outra pessoa escrita por ela mesma, e há algo quase com um tom proibido em ler a correspondência alheia. Posso chamar o sentimento que me atraiu ao livro como uma “fofoca saudável e edificante”, atrelada ao meu amor pelo gênero. Acho incrível ler memórias, pois acredito que todo mundo tem uma história. Bem contada, tudo fica interessante, e é em livros assim que descobrimos situações semelhantes, comparamos experiências e vivências e crescemos tanto como leitores quanto pessoas. Essa obra inicialmente me atraiu pela força das circunstâncias: ela estava aqui em casa e era do gênero, logo aproveitei a oportunidade. Encontrei um livro muito interessante que aguçou a minha curiosidade e satisfez a minha necessidade em conhecer mais sobre o autor, sem necessariamente precisar pegar informações extras na internet para isso. O resultado foi uma leitura prazerosa – apesar da completa aversão pela capa visceral bem típica das escolhas editoriais dos anos 1980 – que me deu uma visão muito boa sobre quem era Henfil, tudo isso ao mesmo tempo em que satisfazia a minha alma fofoqueira ao ler suas cartas para outras pessoas.
 
Começamos o livro com uma carta de 3 de outubro de 1973, com Henfil avisando para a mãe que chegou em Nova York apesar do medo de voar, dizendo estar “ainda grogue do Mandrix que tomei para desmaiar e aguentar o medão enorme de avião” (p. 11). Já nas primeiras correspondências eu comecei a pensar em como cartas precisam de criatividade e dedicação. Hoje em dia trocamos algumas mensagens curtas ou já partimos direto para o áudio. Isso me fez refletir sobre as dificuldades de comunicação na década, especialmente no caso de Henfil, que ainda publicava em jornais e revistas no Brasil e constantemente enviava seus desenhos e precisava ler os materiais aqui publicados. Cartas eram a solução para notícias e comunicar desejos, o que dá a essas viagens uma excelente oportunidade de registro. Palmas para o autor, que demonstra uma excelente capacidade de catalogar e editar seu material pessoal, ao mesmo tempo que consegue nos mostrar as características de sua escrita: intimista, engraçada, direta e um pouco sádica. Eu gostei.
 
A ordem cronológica nos permite ver a evolução do autor e ter noção de todas as dificuldades enfrentadas na viagem. O primeiro aspecto era a quase necessidade de sair do país, dado o aumento da censura. Isso desencadeou uma vontade de conhecer e trabalhar no mercado editorial estadunidense, mas não seus percalços: encontrou um ramo de difícil adesão e com outro tipo de censura, uma dificuldade de falar sobre temas considerados “imorais”. Isso o leva a receber inúmeras críticas e a inusitada classificação como “sick”, sobre o que ele reflete que “a tradução literal de ‘sick’ é doente, certo? Mas é mais. Você pode chamar alguém de imoral; pornográfico, escatológico, sádico e até fascista. Mas ‘sick’ é algo especial. É tudo isto junto. É neurótico, desajustado. Um mundo” (trecho de carta escrita em 22/09/1974 p. 209).
 
O autor também fala das suas dificuldades com a língua bem como a xenofobia escancarada de suas origens latinas. Isso é evidenciado em passagens que visita o hospital (algo constante, devido a sua hemofilia), como por exemplo ao relatar a razão do título da obra, o termo pejorativo “Cucaracha” dado aos porto-riquenhos que habitam na cidade. Sobre isso, ele descreve uma passagem específica: “sou o único paciente estrangeiro e uma fisioterapeuta já me fez sentir isto durante uma semana. Quando soube que eu era do Brasil, passou a cantar debochado e revirando os olhinhos: ‘La Cucaracha... La cucarááácha...’” (trecho de carta escrita em 19/11/1973 p. 29).
 
Sobre o seu tratamento médico, temos a parte que eu mais gostei do livro e que me deixou ávida para mais detalhes e informações: a hemofilia e as dificuldades que os hemofílicos enfrentam. Na entrevista dada ao Pasquim em 1973, o autor relata que a ida para os Estados Unidos em muito era devido à possibilidade de tratamento mais avançado, pois “lá eu vou pegar clínicas que têm condições do hemofílico” (p. 44). Com o tempo, descobrimos que a realidade do sistema de saúde americano é outra e que muitas vezes a “síndrome do patinho feio” que o brasileiro possui pode afetar a nossa capacidade de discernimento e ver as vantagens de um sistema público gratuito de saúde. Eu gostaria de ter lido mais sobre os detalhes do tratamento e das experiências nos hospitais de Nova York, mas ao mesmo tempo entendo que é um tema muito íntimo para se expor ou que gera muitas preocupações para ser retratado tão detalhadamente em cartas a amigos.
 
Também verificamos outras situações comuns na vida de intercambistas e imigrantes. Uma delas (talvez a mais aflitiva) é a dificuldade de adaptação à alimentação local que desencadeia saudades de alimentos muito específicos. Isso trouxe algumas passagens engraçadas, e destaco essa:
 
“Mudando de assunto: se você tiver portador, pelo amor de Deus, manda para mim: pão jaú da Padaria Ouro-Pretana lá de Belzonte, pelo menos uma garrafa de Mate-Couro, farinha de mandioca, rapadura, mate Leão (ai, que vontade!) e (isto mais urgente) polvilho antiséptico Granado, que é o único desodorante que não dá cheiro maior que o anterior. Pés-de-moleque, ô mano, manda pelo menos um. Ah! Isto é simples: preciso urgente de uma caixinha (ou duas?) de fósforos Pinheiro ou Beija-Flor. Deixa eu explicar, homem. Não é fanatismo, não. É que aqui não tem caixas de fósforos de madeirinha, é de papelão. E aí, tragédia, não dá para batucar”. (trecho de carta escrita em 11/11/1973, p. 27-28).
 
Henfil viveu a infância e juventude em Belo Horizonte, então diversos de seus pedidos e lembranças são dessa cidade, onde nasci e cresci. Adorei as referências a padarias, restaurantes, costumes típicos mineiros, bairros, escolas, e consigo entender a necessidade de um Mate-Couro. A padaria Ouro-Pretana não conheço, alguém dá notícia? Enfim, cada um com sua dificuldade. Eu lembro que quando passei 6 meses na Inglaterra senti uma saudade doentia de arroz com feijão e quando voltei passei uma semana comendo isso nas três refeições, incluindo no café da manhã. Cada um com seus desejos e suas manias.
 
Outro aspecto importante do livro é a dificuldade do autor com a língua. Ele chegou nos EUA sem falar uma palavra de inglês, e ia se virando com a ajuda de brasileiros, arriscando o “portunhol” e com mímicas. A situação era mais complicada quando tinha que ir à emergência do hospital, mas ele foi se virando e melhorou bastante durante o período das cartas. Sobre isso, ele escreve:
 
“Você me pergunta pelo curso de inglês no Berlitz. De fato, foi loucura minha sair daí sem saber falar nenhuma palavra de inglês. Agora me arrependo de nunca ter prestado a mínima atenção nas aulas de inglês no Colégio Arnaldo, de BH. Mas com o joelho nesta explosão, desde que cheguei do aeroporto ainda não saí de casa. E toca a ler jornais do Brasil, porque o New York Times é grego. Só entendo as fotografias. Dá um desespero, Zé, pensar que vou ter que um dia decifrar aquilo tudo”. (trecho de carta escrita em 05/10/1973, p. 13).
 
Como já mencionei, fiquei com vontade de ler mais sobre as experiências nos hospitais, de longe a melhor parte do livro. Também achei desnecessária a entrevista ao Pasquim no meio do livro. É demasiadamente longa e quebra um ritmo, sem muita razão de estar ali. No geral, a minha sensação ao final do livro é positiva, pois acredito conhecer um pouco mais sobre quem foi Henfil. Um homem batalhador, cheio de seu “jeitinho brasileiro” para resolver as situações. Um homem idealizador e sonhador, mas que corria atrás. Uma figura interessantíssima com muita história para contar. Acho que essas são as características de um bom livro de memórias, aquele que saímos com a sensação de conhecer um pouco mais da pessoa atrás daquelas palavras. Nisso, estou satisfeita com a leitura e indico para aqueles curiosos sobre a vida de brasileiros nos EUA ou querendo mais detalhes sobre o trabalho jornalístico nas dificuldades dos anos 1970.
 
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