FONSECA, Rubem. Agosto. Rio de Janeiro:
MEDIAfashion, 2008. 387p.
Tenho que começar essa resenha
elogiando a Coleção Folha “Grandes Escritores Brasileiros”, de onde tiro a
edição lida de Agosto, de Rubem Fonseca (volume 13). Sou sempre a favor
de lançamentos editoriais coordenados, ainda mais quando seguem um formato de coleção.
Fica incrível na estante e mune prazer aos colecionadores. Para mim, tem um
efeito extra, que é incitar a curiosidade de conhecer todas as obras da
coleção. Foi assim que cheguei a este livro! Minha mãe, de quem puxei o
gosto pela leitura, adquiriu a coleção para a minha alegria. Corta a cena para
mais de 10 anos depois quando organizando a estante encontramos as obras, em
uma clara demonstração dos pequenos prazeres que uma simples faxina dos
proporciona. Foi quando resolvi colocar Auto da Compadecida na minha lista (o
livro é o volume 18 da coleção), e foi uma verdadeira relíquia literária cuja
resenha vocês podem conferir AQUI. Não me lembro exatamente do porquê agora,
mas Agosto me chamou a atenção. Dito e feito, o livro passou a figurar
nas minhas listas de leitura, finalmente chegando a sua vez. Antes de ler, perguntei para
minhas amigas ávidas leitoras o que elas achavam da obra, com o objetivo de
obter indicações e conhecer um pouco mais da história. Veio como uma surpresa saber
como foi arrebatadora sua recepção no mercado editorial quando da sua
publicação em 1990, e muito me intrigou o fato da obra ser conhecido como um
típico “livro de vestibular”. Acho que isso muitas vezes é o suficiente para
instalar aquele “ranço” básico, não é mesmo? Junta um período conturbado na
vida de muitos (eu sei que tenho trauma dos livros que estudei para meus
vestibulares) com todo o hype que acompanha obras adaptadas a novelas e/ou
séries na Rede Globo, têm-se um livro que muito se conhece, mas pouco se lê.
Acho que esse é o maior problema de Agosto: o livro foi refém de suas
conquistas. Por conseguir misturar com maestria história e ficção, foi
excessivamente abordado nas escolas, e por ser um sucesso editorial, foi
rapidamente adaptado para outras mídias. Por muito tempo só se falava no livro,
e a impressão que tenho é que as pessoas se cansaram um pouco dele. Mas ao
mesmo tempo, acredito que está na hora de mais uma vez revisitarmos este hoje
considerado um clássico da literatura política brasileira. Em Agosto, Rubem Fonseca
mistura história e ficção ao situar seu livro no olho do furacão da crise de
1954, no exato mês de agosto, que culminaria no suicídio de Getúlio Vargas. Começamos
com o atentado contra a vida de Carlos Lacerda, uma tentativa desesperada de
frear a crescente popularidade do jornalista na política brasileira, orquestrado
(e mal feito, diga-se de passagem) por Gregório Fortunato, chefe da guarda
pessoal de Vargas. O atentado feriu um coronel da Marinha e desencadeou uma
série de manifestações populares e pressão política que começava a balançar as
estruturas do governo varguista. Também somos apresentados a outras pessoas
reais que viram personagens nessa história, desenhando com precisão e
habilidade as dinâmicas da falcatrua e corrupção do governo à época. Como já dizia o poeta, o
Brasil não é para amadores, e toda a confusão de 1954 foi trazida como um
incrível contexto histórico para a parte de ficção da obra: o assassinato do
rico político e empresário Gomes Aguiar, presidente da Cemtex, empresa que
ganhou contratos milionários do governo brasileiro. O nosso protagonista é o
Comissário Alberto Mattos, o responsável por investigar o crime. Mattos é um
homem grosseiro na aparência e nos modos e sofre constantemente com uma úlcera
estomacal. Seu sucesso na profissão é atribuído ao fato dele conseguir navegar
entre os colegas corruptos com destreza, procurando fazer o certo por meios nem
sempre corretos. Ele se relaciona com Salete, uma garota de programa que morre
de amores por ele, mas não é correspondida. Na verdade, o coração de Mattos
bate mais forte por Alice, uma antiga namorada que hoje é casada com o empresário
Pedro Lomagno, que pode ter algo a ver com o crime que Mattos investiga. O assassinato é intrigante:
aconteceu em um luxuoso duplex de um bairro de classe alta no Rio de Janeiro, e
são muitas as pistas para poucas respostas: pelos pubianos pretos deixados no
sabonete do banheiro, sangue, e um anel dourado muito grande para pertencer à
vítima. A esposa do falecido, Luciana Aguiar, muitas vezes parece estar mais
preocupada com as aparências do que realmente desvendar a morte do marido, e os
interrogatórios são arrastados e todas as testemunhas foram de alguma forma
coagida. De cara percebemos que não é um crime que poderá ser solucionado pelas
vias naturais da justiça, e a investigação conduzida por Mattos começa a
incomodar muita gente poderosa. O que mais chama atenção no
livro é o realismo. Os personagens são descritos de forma quase brutal, e o
autor não mascara diversas facetas da sociedade brasileira. É assustador
vivenciar a narrativa que traz diálogos tão diretos sobre combinações de práticas
corruptas, o que desperta um sentimento de indignação. Era assim em 1954 e,
infelizmente, ainda é assim em 2021. E aí temos noção do recado do autor: depois
da tempestade vem a calmaria... mas a tempestade aparece de novo. Mas, sem
qualquer sombra de dúvida, o grande mérito do livro é nos mostrar como a Literatura
pode ser utilizada como documento histórico, e como História e Literatura
conseguem se misturar. Venho pensado bastante nisso ultimamente, como um livro
clássico consegue ser uma fonte histórica, e como a fonte histórica consegue
ser uma inspiração literária. O gênero de “Romance Histórico” já é bastante
reconhecido no mercado editorial mundial (o sucesso de Ken Follett não me deixa
mentir), e isso ainda não é tão explorado por aqui. Estranho, pois temos muitas
fontes para muitas e muitas páginas. Fico feliz que Fonseca tenha feito isso,
tenha criado coragem para revisitar a história (e de quebra uma pessoa tão
marcante no nosso imaginário social e político) e, ao fazer isso, denunciar o
verdadeiro caos político da época. O livro todo é elaborado com esse objetivo,
e, na minha opinião, ele foi devidamente alcançado. Então meu recado é para você
que ainda não conhece a obra: dê uma chance. Aqui está um grande romance
policial, com personagens complexos e um excelente estilo de escrita que impões
um acelerado ritmo de leitura. E, o mais incrível: ao fazer isso, engajar com o
caso, ele nos faz entender e refletir sobre as estruturas da sociedade política
brasileira. Um trabalho extremamente bem feito.
Blog literário criado exclusivamente para divulgação e incentivo à leitura por meio das resenhas dos livros lidos por mim, Fernanda, e pelas duas outras colunistas, Alice e Evelyn. O blog não tem nenhuma relação com o projeto de leitura intitulado "Viagem Literária".
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